Redressing Gendered Health Inequalities of Displaced Women and Girls

University of Southampton

A teimosia de tentar o impossível -Comentários sobre o documentário de Ângela Facundo Navia

A teimosia de tentar o impossível -Comentários sobre o documentário de Ângela Facundo Navia

Ângela Facundo Navia, faz parte do Departamento de Antropologia, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil.

 

O documentário “Sair adiante / Salir adelantetem, como outras peças audiovisuais, a capacidade de condensar, em um formato sensorial intenso, ideias, emoções, experencias e intenções compartilhadas. Nesse caso, dentre outras, percebemos a intenção das realizadoras de solidariamente buscar caminhos possíveis para a construção de um futuro digno para migrantes, refugiadas e refugiados. Do mesmo modo, o documentário nos comunica o desejo de restituir às mulheres sua capacidade de se apresentarem por si mesmas, no meio de processos migratórios em que habitualmente são representadas por outros. Nos fragmentos em que as mulheres nos contam de onde elas vieram, nos falam sobre o caminho, as dificuldades e violências sofridas, sobre como tomaram algumas decisões e o que desejam dos dias porvir; elas são também as protagonistas da própria história. Movimento importante, especialmente quando com frequência a captura burocrática da vida, caraterística dos processos assistenciais, destitui as pessoas até da propriedade da sua biografia. A história das pessoas, na logica burocrática humanitária, importa não porque vivida, mas porque passível de ser enquadrada nas categorias migratórias ditas adequadas.

A diversidade de origens, de experiencias e de trajetórias das mulheres no documentário, nos lembra também da diversidade venezuelana. Advertência fundamental para reverter a construção congelada de estereótipos nacionais que, não poucas vezes, contribui para o desenho genérico de políticas de atendimento e para a proliferação de leituras sociais igualmente homogeneizadas. O foco nas mulheres, por último, salienta também as diferenças quando se enfrenta o árduo caminho do êxodo com corpos e condições femininas ou feminilizadas e a necessidade de entendermos tais condições, procurando que não se transformem em novas desigualdades e em situações ainda mais precárias.

Se o foco, como dito, são as mulheres, a categoria gênero, de forma mais abrangente e complexa, se torna central no documentário. Sabemos que não apenas as mulheres, mas as pessoas feminilizadas, são alvo de violências que ora são o motivo para a migração, ora a razão de mais agressões durante os movimentos que, supostamente, deveriam colocá-las em segurança. Do mesmo modo, como nos lembra Daniela na sua fala no documentário, as mulheres são atingidas pela violência que as fronteiras impõem também a seus companheiros, esposos e outros parentes homens. Ela não ia abandonar o pai dos seus filhos que foi deportado de forma separada da família. Sua busca pelo reencontro, que é um direito consagrado nas legislações nacionais e internacionais, significou, na realidade, o recomeço de um processo migratório de forma irregular e a perda do investimento já realizado na primeira tentativa de permanecer no Brasil.

Como há tempos nos alertou Kimberlé Crenshaw, quando os homens que fazem parte do grupo de parentesco estão sob a ameaça constante das forças de segurança ou de vigilância dos estados-nação é mais difícil para as mulheres expressar, por exemplo, as violências que acontecem ao interior dos grupos. Além disso, a violência contra outros membros da família impacta o grupo todo, fragilizando ainda mais as relações que são o suporte material, emocional e espiritual nas migrações em condições precárias.

Nunca é demais destacar que o conceito de família é polissêmico e que não pode ser entendido, especialmente pelos programas de assistência aos migrantes e refugiados, como uma categoria estável. Para algumas pessoas a família não é o local afetivo e seguro que costuma ser a ela associado. Aprendemos com inúmeras pesquisas que para muitas delas, cuja existência não se encaixa nos padrões hegemônicos de gênero e sexualidade, a família pode ser o primeiro local da violência e da expulsão. Também temos insistido que a configuração dos grupos familiares é extremamente diversa, assim como são as normas de parentesco e os acordos de cuidado de crianças, idosos e outros membros vulneráveis. Essa dimensão é particularmente importante quando se abordam as migrações de grupos indígenas, cujas normas de parentesco e arranjos produtivos e reprodutivos costumam ser criminalizados com base em legislações formuladas sob modelos familiares hegemônicos, brancos e de classes medias urbanizadas. Contudo, para muitas pessoas a família é, sim, um grupo de apoio e a separação dela significa uma perda material, simbólica e afetiva irreparável. Daí a necessidade de insistirmos, acompanhando ainda o relato de Daniela, no direito das pessoas de permanecerem juntas, quando assim desejado, ainda nos processos irregulares de atravessamento de fronteiras.

Outro dos aspectos sobre os quais o documentário chama a atenção é sobre o pouco avanço que temos em matéria de direitos. A maioria dos esforços de pessoas solidárias, das organizações não governamentais, agências humanitárias e até de alguns setores dos governos nacionais, orbitam ainda ao redor dos direitos pela subsistência. Lutamos para que as pessoas não adoeçam, para que não morram, para que não sejam privadas da sua liberdade, para que não sofram de violações, deportações, confinamentos etc. Não temos conseguido avançar, no caso das migrações mais precarizadas e racializadas, para os direitos pensados na dimensão do desfrute: Direito à saúde entendida de forma ampla, direito a usufruir dos avanços da ciência e da tecnologia, direito ao abrigo, direito ao prazer, a ter um lugar belo para si nesse mundo e a possibilidade imaginativa de um futuro em segurança e com a promessa da alegria como sentimento regente e não como assomo esquivo e momentâneo.

Inclusive quando pensamos os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres – que é outro ponto importante do documentário – nossa imaginação se vê colonizada pelo pessimismo do mundo insuficiente para todos, da terra como direito para poucos. Por uma parte, vemos mais preocupação com a reprodução do que com a sexualidade, como se, por exemplo, gozar não fosse fundamental para a vida. De outra parte, assistimos ao desdobramento de esforços para garantir o direito das mulheres a não ter crianças, sem dúvida importante. Mas, ao mesmo tempo, acompanhamos a insuficiência das políticas que deveriam garantir que todas as pessoas com capacidade reprodutiva que desejem ter crianças possam fazê-lo e vê-las crescerem e terem “um futuro melhor”. Tal como expressaram muitas das mulheres do documentário, que projetam suas crianças como sendo o futuro em si, mas, infelizmente, renunciando à imaginação do seu próprio futuro que parece já condenado à luta pela subsistência ou a sua inexistência discursiva.

Seja pela fundamental luta pela subsistência, seja pela teimosia de querermos sempre uma vida plena e com mais dignidade e alegria para todos, deve ser ressaltada a importância de uma estrutura pública que forneça os elementos básicos para tal disputa. Se no contexto brasileiro conseguimos articular algum tipo de resposta para as populações migrantes é graças a um sistema público e universal de saúde e previdência social. Mesmo com todas as falhas que devem ser sanadas – e mesmo no meio da espantosa crise política e sanitária que atravessou o país – o SUS e o SUAS foram e são fundamentais para a defesa da vida e para a possibilidade de sonharmos com um amanhã de mais direitos.

É bom lembrar, então, que também nesses sistemas há uma dimensão de gênero a se considerar. Muitas das equipes de atendimento nos municípios que recebem migrantes são integradas maioritariamente por mulheres, desempenhando suas funções em condições de baixa remuneração e sobrecarga de tarefas. A melhoria nas condições de trabalho dessas equipes e o investimento robusto e permanente no sistema público de saúde e previdência são indispensáveis tanto para migrantes quanto para os nacionais que dependem do atendimento público. O fortalecimento estrutural dos sistemas universais de assistência social pode contribuir também a desmontar a falsa ameaça dos recursos escassos dos quais os migrantes estariam usufruindo em detrimento dos benefícios dos nacionais. Sistemas públicos bem estruturados, maior justiça na distribuição de renda e o avigoramento do critério de universalidade (com sensibilidade para a diferença) são uma das chaves da transversalidade da luta por direitos. Além disso, um sistema forte de bem-estar social deveria nos levar a requerer dos governos a desmilitarização da vida e das fronteiras, inclusive diminuindo os orçamentos bilionários que os estados-nacionais destinam às indústrias bélicas e ao sistema industrial fronteiriço.

Ao mesmo tempo, o plano estrutural não deveria estar isolado de um compromisso ético intersubjetivo com o cuidado cotidiano das pessoas que dependem dos esforços políticos coletivos e que se encontram em situação de desigualdade. Também nessa dimensão precisamos de equipes bem remuneradas, bem formadas e contratadas em condições dignas de trabalho que provejam ferramentas suficientes para a complexa empresa do acolhimento. Cuidarmos mutuamente um dos outros passa tanto por respeitar a diversidade, como por fazer um pacto de igualdade, dedicando aos outros o respeito e os detalhes que gostaríamos para nós mesmos. Me refiro ao cuidado encarnado nas simples coisas: respeitar a privacidade das pessoas, mesmo se estão morando na rua ou em tendas, não usar suas imagens como troféus humanitários, entender e acompanhar suas recusas de atendimento, inclusive quando nós acharmos urgente a intervenção, não condicionar o atendimento a sua obediência submissa, perceber seus gostos e desejos e, no possível, tentar que eles tenham cabimento no dia a dia. Quando os desejos das pessoas migrantes contrariarem nossos próprios princípios de democracia e igualdade, sempre vale a pena lembrar que os direitos não são apenas para as pessoas que atuam como nós desejamos, mas para todos e todas.

Finalmente, gostaria de salientar o valioso esforço do documentário por traçar as rotas percorridas pelas mulheres protagonistas. Como já consagrado nos estudos migratórios, toda presença na migração significa também uma ausência no território que se deixa para atrás. Um esforço de recepção se origina num movimento de expulsão, na inabilitação dos territórios para a vida ou no estreitamento violento das possibilidades de ação no meio de contextos de escassez. Se o movimento de recepção é fundamental, considero que também é indispensável nosso movimento teimoso de resistência diante do capitalismo predatório, contra os governos tiranos, mas também contra os imperialismos que oferecem salvação, mas desestruturam economias, violentam e confinam as pessoas que fogem e contribuem para que cada vez menos seres tenham o direito de um lugar para si na terra.

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